Ricardo Alves

Arquivo de intervenções cívicas de Ricardo Alves.

Cidadania de residência

 

Os países desenvolvidos contêm um número crescente de pessoas que não são cidadãos na plenitude dos seus direitos: os imigrantes. Efectivamente, os imigrantes estão sujeitos às leis do seu país de residência, aí pagam os seus impostos, e contribuem para o bem comum de um país que é seu pelo trabalho e muitas vezes pela socialização. Na prática, cumprem com os mesmos deveres que os nacionais desses países, mas disfrutam de menos direitos. Agravando a situação, a persistência de Leis de Nacionalidade que não se baseiam num jus solis estrito exclui muitas vezes da nacionalidade –e por conseguinte da total cidadania– um grande número de descendentes de imigrantes.

Deve notar-se que embora os conceitos de nacionalidade e cidadania sejam frequentemente tomados por sinónimos, de facto não o são. Na verdade, a nacionalidade é apenas uma forma de estabelecer uma ligação jurídica entre uma pessoa e um Estado, enquanto a cidadania é o conteúdo dos direitos do indivíduo enquanto residente no território de um Estado. Esclarecida esta distinção, entende-se como –historicamente– a atribuição de direitos de cidadania nem sempre acompanhou a pertença a um país. Consideremos a evolução histórica do direito de voto nos EUA e na França. Nos EUA, uma revolução feita sob o lema “não aos impostos sem direito de voto”[1] alargou em 1830 este direito –restrito aos proprietários brancos do género masculino nos tempos coloniais– a todos os homens brancos maiores de idade, tendo o direito de sufrágio sido sucessivamente conquistado pelas mulheres em 1920, pelos negros do Sul em 1965, e pelos jovens entre os 18 e os 21 anos em 1971 (actualmente, continua a ser negado –com a excepção de quatro Estados– a todos aqueles que já tiveram uma condenação judicial). No caso da França, o direito de voto foi concedido aos operários em 1848, aos militares em 1945, às mulheres em 1946, e alargado aos jovens entre os 18 e os 21 anos em 1974. Em qualquer destes casos, a nacionalidade dos grupos de pessoas mencionados jamais esteve em causa: era a cidadania que lhes era negada, especificamente o direito de votar. As causas desta discriminação podiam ser a classe social, o sexo, a origem étnica, ou o nível etário, tendo sido em muitas situações o analfabetismo ou o nível de rendimentos usados como subterfúgios. A progressão dos últimos duzentos anos –da qual os casos dos EUA e da França são paradigmáticos– foi portanto no sentido de universalizar o sufrágio, aproximando os países desenvolvidos do ideal democrático do governo de um povo por representantes da totalidade desse mesmo povo, de tal modo que –a partir do final do século 20– são raras as constituições dos países ditos democráticos que não preconizem o sufrágio universal. No entanto, impõe-se agora como inexorável mais um passo para que o sufrágio seja realmente universal: o reconhecimento do direito de voto –e portanto da cidadania– a todos os residentes, nacionais ou não.

A distorção da representatividade que a existência de um grande número de imigrantes sem direitos políticos introduz inevitavelmente nas sociedades europeias contemporâneas não deve ser negligenciada. Um caso extremo é o do Luxemburgo, onde mais de um terço da população residente é estrangeira (na sua maioria, portugueses) e portanto não vota. Mesmo em Portugal, onde os imigrantes legalizados são 4% da população total, há classes sociais inteiras que estão sub-representadas no eleitorado –como é certamente o caso do sector produtivo fulcral do modelo económico português: a construção civil. A extensão do direito de voto aos imigrantes aparece assim como uma necessidade inelutável para que se assegure a representação correcta daqueles a quem as leis e os impostos são aplicados. Poder-se-á contrapôr que o direito de voto só deve ser concedido áqueles que tenham manifestado uma vontade real de residirem definitivamente no território de um dado Estado, por exemplo, adquirindo a nacionalidade. Todavia, uma das consequências de um sistema económico global baseado na livre circulação de capitais e de trabalho é a extrema mobilidade de vastos sectores laborais. Essa mobilidade faz com que o país de residência se possa alterar antes que o imigrante considere sequer solicitar a naturalização, independentemente do seu real desejo de o fazer e de assim aceder à plena cidadania legal (em Portugal, a naturalização é possível após seis ou dez anos de residência legal conforme se trate de nacionais de países lusófonos ou de nacionais de outros países, respectivamente). Portanto, são as próprias condições sociais e económicas contemporâneas que suscitam um conceito de cidadania que seja derivado da residência, e não apenas da nacionalidade.

Alguns países já reconheceram o direito de voto a estrangeiros, em todas as eleições e a partir do primeiro ano de residência. É esse o caso da Nova Zelândia (desde 1975), e em parte do Reino Unido (onde todos os nacionais de países da Commonwealth têm o direito de voto em todas as eleições). No que concerne as eleições locais, o direito de voto a todos os estrangeiros já foi concedido na Irlanda (desde 1963, com o requisito de seis meses de residência), na Suécia (desde 1975, com o requisito de três anos de residência), na Dinamarca (desde 1981, com o requisito de três anos de residência), na Noruega (1982), nos Países Baixos (desde 1985, com o requisito de cinco anos de residência) e na Finlândia (para residentes de outros países escandinavos que ali se encontrem há três anos). A questão da concessão do direito de voto a residentes não nacionais tem sido também suscitada pela evolução da União Europeia, que a partir do Tratado de Maastricht (1991) institucionalizou o conceito de «cidadão da UE», impondo assim aos seus Estados membros o alargamento do direito de voto aos residentes que sejam nacionais de países da UE, tanto para as eleições locais como para as eleições para o Parlamento Europeu[2]. Foi um sinal revelador da xenofobia latente da construção europeia que a «cidadania europeia» tenha sido restrita aos nacionais de países da UE imigrados –cerca de cinco milhões–, e não tenha sido igualmente concedida aos imigrantes que não são nacionais de países membros da UE, que são cerca de quinze milhões…

Em Portugal, podem votar nas eleições autárquicas –sob condição de reciprocidade– os nacionais de países lusófonos (sendo necessários dois anos de residência para eleger e quatro para ser eleito), e os nacionais de outros países (sendo necessários três anos de residência para eleger e cinco para ser eleito). O último caso incluiu –nas autárquicas de 2001– nacionais da Noruega, da Estónia, de Israel, do Uruguai, do Perú, do Chile, da Argentina e da Venezuela. O requisito da reciprocidade garante o direito de voto para apenas dois países lusófonos –Cabo Verde e o Brasil– deixando de fora comunidades imigrantes numericamente muito significativas, como os originários de outros países de expressão portuguesa[3]. Estas disposições excluem também, à partida, todos aqueles que não possuam uma autorização de residência, ou seja, tanto os portadores de autorizações de permanência (quase 200 mil segundo os últimos dados disponíveis[4]), como aqueles que venham a ser abrangidos pelos vistos de trabalho do actual Governo. Trata-se de uma formidável massa laboral e contribuinte, sem qualquer peso eleitoral…

Argumenta-se muitas vezes contra a possibilidade de conceder o direito de voto aos imigrantes dizendo que deveriam residir o tempo necessário para conhecerem as instituições e o sistema político, e que deveriam falar a língua do país de residência. É estranho que esta preocupação não tenha surgido aquando da aprovação do Tratado de Maastricht, pois não é evidente que um nacional de um país da UE domine a língua portuguesa a partir do primeiro ano de residência, enquanto os originários de países que têm o português como língua oficial são obrigados a esperar dois anos para aceder ao direito de voto… Porém, deve ter-se em conta que em Portugal não só o voto não é obrigatório, como esse direito apenas se pode exercer após um recenseamento que é voluntário. O imigrante que não se sinta ainda capacitado para participar na vida política poderá portanto optar por se abster ou até por não se recensear…

A ENAR (“European Network Against Racism”, uma rede europeia de associações anti-racistas a que pertence a Rede Anti-Racista portuguesa) iniciou em Madrid, em Junho de 2002, uma campanha europeia pela Cidadania de Residência. Esta campanha exige que “a cidadania da União Europeia, principalmente o direito de voto e elegibilidade nas eleições municipais e europeias, seja reconhecido a todos os residentes da UE, independentemente da sua nacionalidade”. Se tal medida fosse tomada, seria um importantíssimo passo no sentido da implementação de uma cidadania baseada na residência.

Ricardo Alves

Janeiro de 2003

 


 

[1] Tradução livre de “No taxation without representation”.

[2] Artigo 19º da versão final do Tratado de Maastricht.

[3] Cerca de 50 mil (com autorizações de residência) em 2001.

[4] Segundo o SEF, os portadores de autorizações de permanência eram, em 31/5/2002, 181 060.

 

Written by Ricardo Alves

1 de Janeiro de 2003 às 0:01

Publicado em SOS Racismo

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