Ricardo Alves

Arquivo de intervenções cívicas de Ricardo Alves.

Breve história do primeiro século de separação entre Estado e igreja em Portugal

 

Resumo

A separação entre a Igreja e o Estado foi decretada em Portugal em 1911 (20 de Abril), na sequência da instauração da República em 5 de Outubro de 1910. A primeira Constituição da República, aprovada em 1911 (21 de Agosto), veio confirmar a laicidade introduzida pelo novo regime. O golpe militar de 1926 desembocou na ditadura fascista de Oliveira Salazar, a qual teve como um dos seus pilares a aliança com a Igreja Católica. Após a revolução dos cravos de 1974 e a aprovação de uma Constituição democrática em 1976, persistem infelizmente muitas situações e práticas clericalistas que impedem a realização plena dos ideais laicos.

 

  • A implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, deveu-se aos esforços decididos de um movimento republicano numeroso principalmente nos grandes centros urbanos, organizado na Carbonária e que contou com a contribuição valorosa de republicanos, socialistas e anarquistas.

  • O Governo Provisório do Partido Republicano Português procedeu imediatamente a uma série de medidas laicizantes (a abolição dos juramentos religiosos[1], a substituição do ensino da doutrina cristã pela educação cívica[2], o registo civil de nascimentos, casamentos e mortes, uma lei da família legalizando o divórcio e melhorando o estatuto dos filhos «ilegítimos»[3]), a que se seguiu a separação formal entre a estrutura eclesiástica católica e o Estado em Abril de 1911[4], implicando o fim da subvenção pública do clero católico e a «nacionalização» dos seus templos. O fim do regalismo monárquico permitiu tirar da clandestinidade pequenas comunidades protestantes e judaicas (no entanto, demograficamente pouco significativas) que receberam com entusiasmo a alvorada da liberdade de culto, e vinha ao encontro das aspirações laicistas expressas, nomeadamente, pela Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento. Deveu-se ao ministro da Justiça, Afonso Costa, a autoria da Lei de Separação e de outra legislação laicizante. No entanto, a separação desencadeou uma reacção clerical e monárquica que contribuiu para a instabilidade política dos anos que se seguiram, instabilidade essa agravada pela desilusão dos sectores operários com a República, e pela participação portuguesa na primeira guerra mundial. Na sequência da crise económica e financeira do início dos anos 20, a República caiu em 28 de Maio de 1926 quando o general Gomes da Costa, herói militar mas politicamente ingénuo, levou a sua coluna militar de Braga a Lisboa, instaurando uma ditadura de que seria rapidamente afastado…

 

 

 

  • Oliveira Salazar, professor de Direito em Coimbra, entrou para o Governo em 1928 e seria chefe do Governo de 1932 a 1968 (o seu mais íntimo amigo dos tempos de estudante, Gonçalves Cerejeira, foi Cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971). Monárquico na juventude e católico a vida inteira, a reputação de rigor financeiro de Salazar permitiu-lhe granjear o apoio dos grandes grupos económicos. A Constituição de 1933[5] manteve a separação entre Estado e Igreja, embora mencionando explicitamente a Igreja Católica, as relações diplomáticas com a Santa Sé, e estabelecendo uma «República unitária e corporativa» baseada na família como «base primária» da sociedade (as liberdades individuais de expressão, associação e reunião ficaram remetidas para «Leis especiais», o que significou que na prática eram inexistentes). Após uma revisão constitucional em 1935[6], o ensino público ficou submetido aos «princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País» . No ano seguinte, foi decretado que «em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição» (a mesma lei criava uma organização paramilitar para a juventude, que se chamaria «Mocidade Portuguesa»)[7]. Até 1974, todos os portugueses ficarão com a recordação marcante de uma sala de aula encimada por um crucifixo rodeado dos retratos de Salazar e do Presidente da República. A Concordata de 1940[8] virá consolidar a aliança entre a Igreja católica e o regime de Salazar, proibindo explicitamente o divórcio para os casais casados catolicamente e garantindo o ensino da religião e moral católica nas escolas públicas, nomeadamente. Em 1951, a religião católica passará constitucionalmente a «religião da Nação Portuguesa», com reconhecimento explícito do direito canónico, o que constitucionaliza um aspecto fundamental da Concordata. O apoio da Igreja Católica, que foi até à colaboração de sacerdotes com a polícia política e ao apoio à guerra nas colónias, permitiu a Salazar a estabilidade do regime. Após a sua incapacitação para o poder em 1968, a ascensão de Marcelo Caetano à chefia do Governo não trouxe alterações a um regime bloqueado pela guerra e que já pertencia a outra época.

 

 

 

  • Após a revolução de 25 de Abril de 1974, a Igreja católica portuguesa considerou, no imediato, que nada havia de que retractar-se, e conseguiu atravessar o período revolucionário sem sobressaltos de maior. Esta «absolvição» da Igreja católica após um período de colaboração explícita com uma ditadura fascista foi possível porque o laicismo português estava enfraquecido, senão mesmo desmembrado, após meio século de ditadura. Efectivamente, desde 1940 que o essencial da resistência portuguesa fora conduzido pelo Partido Comunista Português, que, como todas as forças marxistas-leninistas, subordinava a aspiração laicista à luta socialista. Os sectores republicanos mais radicais foram dispersos pela repressão dos anos 30, e após 1974 o Partido Socialista, devido a uma leitura redutora ou mesmo errada que responsabilizava o laicismo pela queda da República de 1910-26, orientou-se sempre no sentido de evitar uma nova «questão religiosa», embora formalmente se reclamasse «republicano e laico». Todavia, durante o período revolucionário foi possível obrigar à revisão da Concordata de forma a possibilitar o divórcio civil aos casais casados catolicamente (um movimento popular dinamizado pelo socialista Salgado Zenha), e a Constituição de 1976 retomou a separação sem qualquer referência à Igreja Católica, e implementou a igualdade de todos os cidadãos independentemente das opções em matéria religiosa, e a não confessionalidade do ensino. A Concordata foi mantida e os privilégios da Igreja Católica não foram desafiados, com a excepção da ocupação durante alguns meses, pelas comissões de trabalhadores marxistas-leninistas, da Rádio Renascença (que pertencia, e pertence até hoje, ao episcopado). Durante o «verão quente» de 1975, alguns sacerdotes da Igreja Católica lideraram ou participaram nas manifestações de rua contra o governo liderado por Vasco Gonçalves (no momento em que este contava apenas com o apoio dos comunistas), manifestações que incluíram em várias ocasiões a destruição das sedes de partidos da esquerda radical…

 

 

 

  • Após a estabilização do regime democrático, os cidadãos portugueses desfrutaram de liberdades individuais que, historicamente, pouco haviam conhecido. A não discriminação dos cidadãos por razões de sexo ou de opção religiosa tornou-se uma quase realidade rapidamente, e a aspiração generalizada era poder viver como no resto da Europa ocidental. Nas três décadas seguintes, deu-se um movimento irresistível de secularização dos costumes e de diversificação de opções religiosas. Os católicos praticantes passaram de 26% em 1977 para 18% em 2001; os casamentos civis subiram de 18% em 1973 para 45% em 2005; onde havia menos de um divórcio por cada cem casamentos, há hoje um por cada dois; a vida dos indivíduos e dos casais passou a ser cada vez menos condicionada por preceitos de origem religiosa… Paradoxalmente, o poder institucional da Igreja Católica tem aumentado durante este período. A Universidade Católica, que Salazar não permitiu, é hoje talvez a mais importante universidade privada; nos anos 90, foi atribuído um canal de televisão a um projecto católico; o maior banco privado é presidido por um membro do Opus Dei; o referendo de 1998, que propunha a despenalização da interrupção voluntária de gravidez, viu a vitória do «não» por uma pequena margem…

 

 

 

  • É neste contexto, em que nenhum partido político ou associação promovia activamente a laicidade e os valores de separação do Estado e das religiões, de liberdade individual e de igualdade dos cidadãos, que a Associação República e Laicidade foi formada.[9]

 

 

Ricardo Gaio Alves

Setembro de 2006

Associação República e Laicidade

 


[1] Decreto de 18 de Outubro de 1910.

[2] Decreto de 22 de Outubro de 1910.

[3] Lei da Separação da Igreja do Estado de 20 de Abril de 1911.

[4] Decreto de 3 de Novembro de 1910.

[5] Constituição de 1911.

[6] Revisão constitucional de 23 de Maio de 1935.

[7] Base XIII da «Remodelação do Ministério da Instrução Pública» (1936).

[8] Concordata de 1940; Acordo Missionário.

[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre do outono de 2006.

 

Written by Ricardo Alves

30 de Setembro de 2006 às 0:01